22.12.10
A Embrapa e a
privatização da “Neutralidade Científica”(1)
Por Horacio
Martins de Carvalho
A onda neoliberal que vem dando sentido hegemônico às maneiras de
se conceber e mudar o mundo a partir da perspectiva capitalista,
mais fortemente desde a década de 1990, envolveu a Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa de forma
incontestável, acentuando a sua estratégica de geração de
tecnologias no sentido da artificialização da agricultura.
Essa empresa estatal de pesquisa agropecuária tem contribuído desde
a sua constituição em abril de 1973 para a expansão e melhoria
técnica relativa da agricultura no Brasil. O volume e qualidade da
maioria dos resultados obtidos, a formação de pessoal
técnico-científico, a difusão técnica no nível dos produtores
rurais e a sua expansão institucional no âmbito da cooperação
internacional a colocam como uma das instituições mais eficientes
do país e com presença respeitável nos meios técnico-científicos
mundiais.
Essa qualificação anterior, no entanto, não a exime de
responsabilidades nem de desvios político-ideológicos que a tem
induzido para resultados que são - seria ingenuidade sugerir como
involuntários, afirmadores das desigualdades sociais no
campo.
A opção política estratégica de apoio técnico-científico ao
agronegócio, de efetivação de acordos de cooperação com empresas
transnacionais de caráter monopolista --- como emblematicamente se
concretizou com a Monsanto, e a aceitação e geração de produtos da
sua própria pesquisa a partir dos organismos geneticamente
modificados (OGMs), ainda que no âmbito de uma ampla diversificação
de produção tecnológica, não deixa de marcar o sentido hegemônico
da direção técnico-científica que vem adotando, ao enveredar pelos
caminhos da artificialização da agricultura em consonância com os
interesses das grandes empresas capitalistas transnacionais, sejam
elas as produtoras de insumos para a agricultura sejam aquelas que
comercializam os produtos dela obtidos.
Isso, supostamente, se verifica no âmbito de contradições
técnico-científicas internas ao corpo técnico e administrativo da
Embrapa. Mesmo assim, a concepção reinante sobre a agricultura
familiar e camponesa, iniciativas de produção que representam a
maioria dos estabelecimentos rurais no país, se mantém como de
atrelamento subalterno ao agronegócio, como se afirma no site de
sua Missão e Atuação (2): “(...) programas de pesquisa específicos
conseguiram organizar tecnologias e sistemas de produção para
aumentar a eficiência da agricultura familiar e incorporar pequenos
produtores no agronegócio, garantindo melhoria na sua renda e
bem-estar.”
A EMBRAPA foi constituída e se mantém suportada por recursos
públicos. Isso significa implicitamente que a sua prática de
geração de tecnologias deve (deveria), antes de tudo, estar a
serviço da maioria da população brasileira que produz no campo.
Todavia, quando a direção hegemônica da empresa abre espaço para a
consolidação de acordos como o realizado com a Monsanto desde
2005/2006, e o reafirmando em 29 de novembro p.p. com o aporte de
recursos dessa empresa transnacional ao Fundo de Pesquisa
Embrapa-Monsanto (3), fica mais explícito o caráter real do sentido
da produção tecnológica dessa empresa, ainda que estatal. Ela se
insere no processo governamental mais amplo de sustentação do
capital privado nacional e multinacional do agronegócio, mais
recentemente através das parcerias público-privado.
Não há dúvida de que os acordos com empresas multinacionais como a
Monsanto apequenam a Embrapa e comprometem a relativa autonomia
técnico-científica que deveriam ter seus técnicos e administradores
perante o grande capital nacional e transnacional. Essa parceria do
tipo público-privado, como a efetuada há tempos com a Monsanto,
joga o que poderia se considerar como o melhor da história
institucional da Embrapa na vala comum da mercantilização do saber
e coloca sérias interrogações sobre o caráter que se reveste a área
de cooperação técnico-científica internacional quando esta afirma
ser ‘principalmente a pesquisa em parceria e a transferência de
tecnologia’ (sic).
Supostamente o que se espera de uma empresa estatal, mesmo
submetida a diferentes pressões políticas, é que seus resultados
técnicos se enquadrem como serviços públicos. “(...) O conceito de
técnica mostra que deve ser, por necessidade, patrimônio da
espécie. Sua função consiste em ligar os homens na realização das
ações construtivas comuns. Constitui um bem humano que, por
definição, não conhece barreiras ou direitos de propriedade, porque
o único proprietário dele é a humanidade inteira. A técnica,
identificada à ação do homem sobre o mundo, não discrimina quais
indivíduos dela devem se apossar, com exclusão dos outros. Sendo o
modo pelo qual se realiza e se mede o avanço do processo de
humanização, diz respeito à totalidade da espécie.”(4)
Não se supõe que reine na Embrapa o mito da neutralidade
científica. Todavia, não se espera por outro lado que a direção
hegemônica da empresa esteja identificada com os interesses
produtivistas das empresas privadas nacionais e transnacionais e da
mercantilização da produção tecnológica como disso é exemplo a sua
parceria com a Monsanto.
Ora, essa hegemonia dos interesses do agronegócio e das empresas
transnacionais no seio da Embrapa se torna politicamente mais
comprometedora quando se expande a sua capacidade de transferência
de tecnologia para países considerados em desenvolvimento no âmbito
de uma cooperação Sul-Sul, como o que se está implantando na
cooperação com países da África, América Latina e Caribe.
Será que já não é demais a pressão que Banco Mundial, OMC, FMI e
FAO exercem sobre esses países em desenvolvimento para incorporarem
no seu que-fazer da produção no campo as mercadorias e serviços
denominados de ‘tecnologias para o desenvolvimento da agricultura’,
pacotes tecnológicos esses produzidos (em parcerias) pelas empresas
transnacionais de insumos? Vai então a Embrapa, uma empresa estatal
brasileira, se somar ao esforço anti-social e anti-ecológico de
artificialização da agricultura e da dependência (neocolonial)
dessas economias rurais aos interesses dos grandes conglomerados da
indústria química como Monsanto, Bayer, Basf, Syngenta, Dow e
DuPont? Sem dúvida alguma que isso seria, ou já é, desolador.
“(...) Mesmo que explicitamente não pretenda se impor como um
empreendimento totalitário, a ciência já comporta em si mesma,
implicitamente, a possibilidade de tal projeto (o sentido que ela
projeta sobre o homem e o mundo só pode ser o único possível). Seus
êxitos retumbantes levam-na, talvez inconscientemente, a impor-se
como única dimensão possível do sentido. Sua atitude fundamental
diante do mundo neutraliza todas as outras atitudes. Donde o risco
de tornar-se totalizante e
autoritária.”(5)
______
Notas:
(1) Fonte: texto publicado no sítio do MST: http://www.mst.org.br. (Curitiba, 15 de dezembro de
2010)
(2) Sítio da EMBRAPA.
http://www.embrapa.gov.br/a_embrapa/missao_e_atuacao (acesso
15/12/2010, 08:00 horas)
(3) http://www.agromundo.com.br (consulta 14 dez 2010; 09:40
horas)
(4) Pinto, Álvaro Vieira (2005). O conceito de tecnologia, vol. I.
Rio de Janeiro, Contraponto, 2v. , p. 269.
(5) Japiassu, Hilton (1975). O mito da neutralidade científica. Rio
de Janeiro, Imago Editora Ltda, p. 169.